Ou seria u caracol ?



Rather to my relief the sight of the mark interrupted the fancy (...) " 
Virginia Woolf

Este é o primeiro texto do blog.

Jeremy , um famoso caracol com a concha enrolada para a esqueda , em cima de Theresa , uma caracol de concha regular. Fotografia de Angus Davison , retirada do Wikimedia Commons.

Entre o escarro , o rasto de lesma , e o prego , o caracol permanece ali , movente como uma das pedras do Vale da Morte. Hermafrodita , quando muito , podemos chamá-lo uma forma espiralada. Ele se resolve em espiral , se resolve sem solucionar-se : resolve-se , pois , sem resolução. É concha e é lesma. Adicione sal e ele ainda borbulha de raiva.
O caracol é um detalhe ; e , nele , pisa-se com certa frequência. Sorte a nossa seu casco ser redondo , e não pontiagudo - pois , caso o fosse , a dor da pisada seria ainda mais intensa e o trauma ainda mais traumático.

Enganamos-nos , entretanto , se acreditamos ver o caracol superado. 

Num ensaio de Nada se vê , seu último livro traduzido no Brasil (2019) , Daniel Arasse afirma que o caracol pintado pelo artista italiano renascentista Francesco del Cossa , numa anunciação , funciona como um convite a " um modo particular de olhar ". 


Anunciação , de Francesco del Cossa , c. 1470-1472 , Gemäldegalerie Alte Meister , Dresden. 
" No palácio tão limpo e tão puro de Maria , a Virgem imaculada , esse baboso gera uma desordem e , ainda por cima , ele é tudo , menos discreto. "
Daniel Arasse

O ensaio de Arasse é muito divertido. Seu endereçamento à maneira de uma carta nos coloca imediatamente no papel de voyeurs. Faz-nos sentir uma sensação muito parecida com a tida ao ler romances epistolares tais como As ligações perigosas de Choderlos de Laclos e Cartas Persas de Montesquieu. Em certa medida , o ensaio de Arasse , da mesma maneira que sua interpretação do caracol de Cossa ,  nos convida a olhar de modo particular , não apenas o próprio quadro em questão , mas também a historiografia da arte. A carta de Arasse é endereçada também a uma certa história da arte , é o envio de uma proposta de leitura , até um pouco insistente de sua parte. Mas às vezes o diálogo pode exigir certa insistência. Enquanto seus espectadores , acompanhamos todo o trajeto liderado pelo interesse , ou obsessão declarada - se Hugo Friedrich fala de obsessão por palavra para analisar a obra de poetas , poderíamos falar aqui de uma obsessão por imagem - , de Arasse pela evidência pictórica desse caracol , e pela abertura pela qual este pequeno gastrópode força a passagem a fim de perturbar o enquadramento - paradoxalmente circular e enclausurante - de uma certa iconologia. 

O que o historiador da arte francês se esqueceu de pontuar foi a presença da natividade pintada também por Cossa na parte inferior da mesma anunciação. Esta natividade , além de corroborar para os efeitos provocados pela leitura do historiador , funciona justamente como figuração do que foi apenas prefigurado na anunciação. O caracol de Cossa , enquanto essa figura conscientemente posicionada entre o dentro e o fora do quadro , como nos diz Arasse , essa figura que reclama para si a própria forma divina localizada na parte superior do quadro , num enlace metafórico violento e produtivo ,  passa justamente pela margem que divide as duas temporalidades necessárias para o remanejamento visual do catolicismo. 

Se o caracol é justamente um convite que interliga o espaço do espectador com o espaço que propõe a anunciação , fazendo parte da representação mas sendo ao mesmo tempo o que a denuncia enquanto representação - enquanto um anúncio que deve ser rememorado , ao em vez da imagem de um fato historicamente localizado - , o caracol é também a figura que demarca imageticamente a sequência do quadro. Ele é o que divide o anúncio - poderíamos dizer , a promessa - do acontecimento. O caracol é este ponto de interligação de nosso tempo com essas duas outras temporalidades ; reanunciando e germinando repetidamente , num movimento vagoroso e paciente , o tempo da promessa divina. É ele quem dá a largada , movimentando o quadro sem de nenhuma maneira submeter o todo do quadro a sua função. Não se trata de um quadro cujo tema é o caracol... O caracol não é aqui temático. Pois ele , como nos diz Arasse em dado momento de seu texto , " fixa o lugar da entrada do nosso olhar no quadro. Ele não nos diz o que devemos olhar , mas como olhar aquilo que vemos. " Ele apenas passa por ali , perturbando babosamente o que poderia ser uma simples anunciação. Diz-nos como olhar a figura divina no canto esquerdo superior , quase imperceptível para os olhos mais prestos ; e diz-nos  que esta cena se trata de uma cena em movimento , to be continued , basta olhar um pouco mais abaixo.

Nesses termos , o caracol de Cossa poderia ser pensado junto ao uso da palavra figura durante a Idade Média muito bem estudado pelo filólogo alemão Erich Auerbach (" Figura " , publicado pela primeira vez em 1938). Aqui , caracol de Cossa funciona como essa figura dotada de aspecto " velado e provisório " e de aspecto " eterno e supratemporal " , num movimento incessante , e muito caro para a doutrina cristã , de colocar o que é visível em contato com o invisível , e o dizível com o indizível . Conclui , em outras palavras ,  Arasse :

" Sobre a borda da construção em perspectiva , sobre o seu umbral , a anomalia do caracol lhe faz um sinal , o convoca para uma conversão do olhar e dá a entender o seguinte : nada se vê naquilo que se olha. Ou , melhor , naquilo que você vê , você não vê  o que você está olhando , o por que você está olhando , à espera do que você está olhando : o invisível surgindo na visão. " 

Mas o caracol também não é só isso. Ele é essa forma dúplice (entre a concha e a lesma) , hermafrodita até , que não se finda numa única hermenêutica - e essa é a importante proposta teórica feita por Daniel Arasse em seu ensaio. Sua baixeza , sordidez é o que destaca o quadro. Sua leitura não compete a uma iconografia , mas talvez a uma indiciografia. Ele está ali também para nos reclamar um movimento : movimento ainda que lento , necessário para uma abertura de leitura. De uma certa forma , sua grafia transpassa o ícone , virgem e imaculado , deixando nele , indiscretamente , uma baba indiciática.

O caracol é também essa marca na parede , multiplicada em tantas pequenas outras coisas aparentemente insignificantes , de que fala Virginia Woolf num dos seus contos (The mark on the wall) - conto donde eu tirei a epígrafe de meu texto e donde vou tirar , para fechá-lo à guisa de abertura para um texto seguinte , a citação que se segue:  

" E no entanto a marca na parede nem chega a ser um buraco. Pode até ter sido causada por alguma coisa arredondada e preta , como uma folhinha de roseira deixada pelo verão , e não sendo eu uma dona de casa muito atenta - vejam só , por exemplo , quanta poeira em cima da lareira , a poeira que , pelo que dizem , cobriu Troia por três vezes , apenas fragmentos de vasos negando-se obstinadamente à aniquilação , como se pode crer. " 


O livro de Daniel Arasse citado aqui foi publicado pela Editora 34 , com a tradução de Camila Boldrini e Daniel Lühmann.  O conto de Virginia Woolf foi traduzido pelo poeta e tradutor Leonardo Fróes e publicado pela Cosac Naify (2015). As únicas modificações feitas nas traduções foram os espaços adicionados entre as vírgulas. Fróes traduz , no momento não citado da revelação do caracol , a palavra snail por caramujo ; e isto deverá ser colocado em questão noutro texto. Woolf brinca com as palavras ingleses snailnail  - ou seja , prego. E um prego até que também pode ser um pouco encaracolado ... 

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