A pesquisa

Ainda não nos demos conta da força desestruturante concentrada numa única hipótese. Da mesma maneira que não nos contentamos com a vida de uma única hipótese, de uma única possibilidade, um único porvir. Insistimos em insistir, em desejar. Mas somente o admitimos quando deixamos de desenvolver a filosofia que surge ao defrontarmo-nos com este procedimento tão simples e obscuro. 

Hegel disse que a "beleza impotente" odeia o "entendimento", pois este exige algo que ela não é capaz de suportar, ou ao menos não é capaz de suportar mantendo-se ainda bela. Ao desejar-se bela, a beleza da ignorância se mantém necessariamente impotente, pois não tem a força para desestruturar a si mesma. Hegel afirmava ser preciso de força para atingir o entendimento, seja o entendimento de si, seja o entendimento do "trabalho da morte". Em suma, trata-se do entendimento da negatividade necessário a qualquer diálogo possível, para qualquer pensamento que se faça apesar da ausência de si, e da força necessária para que tal entendimento seja efetivamente realizado.

É preciso então forçar um entendimento. Colocar força em algo para que dele se tire outra coisa ou para que ele se torne, enfim, outra coisa. Porém e se o entendimento surgido dali, desvelado ou (en)tornado, é ainda mais mal compreendido, digno da loucura, da barbárie ou da cultura ainda barbarizada? Para isso, a hipótese hegeliana é que a síntese final vai se dar no e com o espírito.

Não nos demos conta das hipóteses que até então sobrepomos a esta hipótese de Hegel. Pior: andamos vestindo as nossas hipóteses de certezas, de essências, de ontologias, de mitologias. Nossas lógicas estão objetivadas nas obviedades da vida, limitando-se a estas por meio das transcendências permitidas pela linguagem. A língua é fascista, dizia Roland Barthes polemicamente. E várias línguas são menos fascistas que uma, disse mais recentemente o teórico francês William Marx. Porque que, não à toa, é na língua no contato com outras línguas que pode se dar qualquer transformação linguística e psicológica. E não seria justamente a hipótese essa instância em que metapsicologicamente se percebe uma abertura possível da linguagem. "Isto é" não é menos fechado que isto "não seria?"? Ao menos, é dizê-lo de maneira menos afirmativa.

Adeus, dizemos à nossa vontade de pesquisa. Adeus, dizemos a toda e qualquer possível hipótese numa vida adulta. Quando crianças somos seres hipotéticos. Nosso romance familiar é repleto de histórias quixotescas e kafkianas, como nos sugeriu Marthe Robert. Na infância, entretemo-nos com as mais lúdicas ciências.  Algumas certezas se sobrepõem, a realidade se mostra mais sólida e menos alterável, e logo deixamos de lado o hábito de fazer hipóteses. Esquecemo-nos com isso, ou não aprendemos, que à medida em que o real nos é percebido cada vez menos alterável, insistentemente nos mantemos, apesar dele, alteráveis, alterando-nos de crianças a adultos, - um pouco menos ou um pouco mais racionais, saudáveis, felizes. De fato, as hipóteses de realidade que nos levam a duvidar da nossa proveniência ou da genialidade perversa de um deus enganador não parecem caber mais.

Contudo, resta-nos a nossa instabilidade individual, a instabilidade necessária a toda e qualquer alteração e alteridade, a toda redescoberta ou releitura de si e do outro. Podemos e devemos fazer hipóteses acerca de nós mesmos. Este foi o exercício, hipotético, que Freud reservou à psicanálise e a sua recepção: "Temos que escolher ora um, ora outro ângulo, e persegui-lo através do material, enquanto sua utilização parece dar frutos. Cada uma dessas elaborações será incompleta em si, e não deixará de ter obscuridades, ali onde tocar no que ainda não foi trabalhado; mas podemos esperar que da composição final resulte uma boa compreensão."

Por fim, gostaria de lançar uma última hipótese: agora, quando a realidade se mostra também instável, devemos, mais do que nunca, nos questionar: desestruturar nossos valores, nossas metas, inclusive nossas dúvidas. Estes não devem ser esquecidos, mas hipoteticamente subvertidos. Alterados e ainda assim abertos à alteração.


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