e daí?


22:09
Num seminário chamado A linguagem e a morte, o filósofo italiano Giorgio Agamben reflete sobre a necessidade que todo pensamento sobre o ser tem de determinar a fronteira que distingue o que se pode dar um significado e o que se pode apenas indicar. Pensar o viver in mondoviver localizado neste plano compartilhado de comunicação - é estar, ao mesmo tempo, submetido às leis da linguagem e da morte. Só morre quem tem a possibilidade de dizer que um dia irá morrer, e só possui linguagem aquele que é capaz de indicar, através desta, a sua própria mortalidade.

O estudo de Agamben parte da filosofia da antiguidade, passa pelas intuições medievais dos padres da Igreja Católica, até as filosofias modernas de Kant, Hegel, Heidegger, Husserl, entre outros, demonstrando muito bem como fora crucial para o pensamento ocidental a questão da linguagem e da sua privação.
 
"(...) o fundamento da subjetividade está no exercício da língua", afirmou o linguista francês Émile Benveniste, em texto de Problemas de linguística geral. A subjetividade que emerge com o discurso, tornando-o assim um campo de estudo bastante profícuo para pensar novas categorias de interpretar um sujeito, viria carregada também da própria lembrança da morte. Ser, enquanto ser alguém que se exprime e se reconhece enquanto sujeito, é ser/estar sempre sob a luz de um memento mori, sob a lembrança de sua própria negação. Logo, a subjetividade é constituída dessa possibilidade que a linguagem entrega ao indivíduo: a de ser para a morte, ser em direção à morte. Em cada frase por meio da qual um eu se exprime a outrem, em cada ato de comunicação, seríamos assombrados pelo espectro de uma morte porvir, ou seja, da cessação dessa mesma comunicação.

Não é à toa o próprio Benveniste afirmar que essa perspectiva do discurso enquanto instância de emersão da subjetividade poderia reelaborar completamente os vocabulários das ciências - entre elas, sobretudo a psicologia e a linguística.

Se a importância da consciência da presença da morte na linguagem para o desenvolvimento dos estudos já fora reiterada por diversos autores - temos sua enumeração na leitura do livro de Agamben - , pouco se acentuou o fato de insistirmos em recalcá-la no nosso dia-a-dia.  

Se inconscientemente é possível afirmar que cada frase é a lembrança de uma frase não dita, conscientemente, por outro lado, recorremos a um breve esquecimento dessa relação. Tal breve esquecimento parece converter-se num descrédito da própria linguagem como possibilidade de subjetivação, fazendo com que, nos mais variados momentos de nossa vida comum, entoemos frases despreocupadas da sua própria efetividade subjetivante.

Relembrar da relação que a morte tem com a linguagem é ter consciência de sua possibilidade expressiva de delineamento de um sujeito. Parece-me que isto apenas se torna uma questão crucial no pensamento de quem entretece uma relação constante com a linguagem seja de estudo ou de escrita; ou ainda de quem sofreu recentemente a perda de alguém próximo. O luto, averiguava Freud, surge com o fim malogrado da busca pelo reencontro com um objeto externo representado. Com a irrealização de tal reencontro, o que resta é a sua representação em linguagem: palavras inteiramente preenchidas por um peso que delineia um sujeito por igual pesado.

Se há o constante descrédito das ciências que se preocupam em estudar tal dinâmica e frases entoadas da boca pra fora, sem pesarem as consequências éticas que delas podem advir, estamos insistindo em negar aquilo que faz a passagem do ser para um sujeito. O que, me parece, não estar muito longe do descrédito da própria vida e de qualquer possibilidade saudável de perduração.

Comentários