A moeda da vez



"(...) dado que o crescimento explosivo da memória é história, como não resta dúvida de que será, terá alguém realmente se lembrado de alguma coisa? Se todo o passado pode acabar, não estamos apenas criando nossas próprias ilusões de passado, na medida em que somos marcados por um presente que se encolhe cada vez mais - o presente da reciclagem a curto prazo, para o lucro, o presente da produção na hora, do entretenimento instantâneo e dos paliativos para a nossa sensação de ameaça e insegurança, imediatamente subjacente à superfície desta nova era dourada, em mais um fin de siècle? Os computadores, dizem, poderão não saber reconhecer a diferença entre o ano 2000 e o ano 1900 - mas nós sabemos?"

    O trecho acima faz parte do texto "Passados presentes: mídia, política, amnésia" do teórico alemão de literatura comparada Andreas Huyssen.  No início dos anos 2000, Huyssen relacionava, na esteira dos instrumentos interpretativos da psicanálise freudiana, o constante recuo à memória, a construção de novos museus e os discursos revisionistas do fim do século XX com a imposição de um presente de aceleração temporal e de dissolução. O consciente recuo à memória, segundo o autor, seria um sintoma de uma angústia sentida pela aceleração tecnológica e pelo subsequente sentimento de perda de memória.

    Antes da epidemia que vivemos, podemos pensar que estávamos passando por um duplo movimento: o do recuo/recurso à memória – continuação daquela necessidade descrita por Huyssen em seu artigo –  e o de seu contra-ataque, o movimento de uma recusa aos estudos culturais em favor de uma nova utopia liberal que viria salvar-nos de um inimigo bem determinado e inexistente fora da dimensão simbólica. Por mais que este último faça referência a um passado, este é sempre tradicionalizado – ou seja, encapado de uma maneira que não pode advir senão na forma de um renascimento, de uma imitação performada de novidade e não na forma de uma crítica progressista. Talvez os melhores exemplos do primeiro movimento sejam o sucesso dos cursos livres em história da arte e as homenagens em eventos literários a autores e autoras deixados de lado pelos cânones acadêmicos e populares; ambas maneiras encontradas para se fazer uma dita “história a contrapelo”. Os exemplos do segundo movimento poderiam sumariamente serem ilustrados pelos cursos online e vídeos do youtube cujo escopo seria a apresentação de filósofos clássicos e contemporâneos e de suas respectivas filosofias, sem tanto as suas devidas contextualizações, as suas reimplementações temporais quanto a sua importância para o pensamento ocidental, em geral, e especificamente para o pensamento brasileiro. O resultado da ascensão deste segundo movimento, já tradicionalmente reconhecível mas agora trasvestido de novas cores e novos aspectos, de novo vocabulário, é o descrédito – manifestado por um desconhecimento geral –  na pesquisa em ciências humanas.

    O que assistimos e sentimos hoje, através de nossas telas de informação, são os resquícios da força de ambos os movimentos: a lembrança do que nos levou política e socialmente a uma miséria e incerteza sanitária; e a aclamação por um retorno, não a um passado de outrora, mas a um presente que não seja este em que se vive, ou seja, o retorno a um presente desinteressado nos efeitos reais de uma doença e a favor da manutenção utópica de seu discurso calcado na progressão econômica.

    Pensaríamos estar, assim, entre duas melancolias, entre duas expressões de uma falta de algo que nunca tivemos por completo: a melancolia de um passado decalcado e a melancolia utópica de um presente-anterior que jamais existiu. Não possuímos nem o tempo verbal para nomear este último adequadamente. Contudo, talvez seja justamente esta inadequação que não nos permite, inclusive, no plano geral, enxergá-los como faces de uma mesma moeda. Como faces de uma mesma melancolia. Assim, talvez fosse necessário, mais do que tridimensionalizá-la ou quadridimensionalizá-la – como é a nossa tendência em tempos de tecnologia –, bidimensionalizar tal moeda: propô-la de maneira mais simples, tal como propunha o exercício plástico crítico dos cubistas do início do século XX. O exercício cubista atingiria o seu ápice: uma simplicidade operacional, entretanto, não equivale a uma simplicidade visual. Bidimensionalizar não quer dizer enxergar de maneira menos complexa.

    Adiantamos o nosso fin de siècle? Eu diria que este foi adiantado com a força de um acontecimento natural e globalizado. Mas recebê-lo passivamente não quer dizer que devemos vivê-lo de igual maneira. Diria, portanto, que estamos num presente em que nem o passado nem o futuro são bem traçados para que, com isso, estes sejam capazes de esfumaçar os traços de certeza um do outro. Mais do que uma incerteza absoluta, estamos incapazes de recorrer ao passado e ao futuro para calcar uma sequer possível referência maniqueísta. O presente é o que temos de menos incerto, bem como de menos concreto. E é isso o que faz com que nos enclausuremos nele recorrendo para os possíveis já bastante conhecidos. É o que faz girarmos a moeda, insistentemente percorrê-la e terminar escolhendo o nosso lado, a nossa cara e a tua coroa.

    Incapazes de lançar-nos no novo, não porque dele temos medo, mas porque sua porta está trancada em algum lugar que nos é desconhecido, estamos numa quarentena que não começa e nem termina nos metros quadrados de nossas residências. Resta-nos um exercício: recorrer a simplicidade complexa de uma bidimensionalidade. Esta nos lança, eu e tu, num mesmo plano de discussão... não numa planificação simplista – a dos terraplanistas, por exemplo – mas na simples bidimensionalidade dos cubistas: a de uma complexidade visualmente destrutiva que é capaz de representar a construção de uma nova anatomia. Se Huyssen pensava o recuo a memória como um sintoma da angústia perante a aceleração temporal, qual seria o sintoma por trás desta insatisfação que se manifesta através desta moeda, que, quando chapada pela prensa quente de nossos dias atuais, dissolve as linhas que distinguem um lado do outro? 


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